*Previsão de envio a partir do dia 30/03/2022
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O Código Processual Penal da província do Piauí data de 1919. O anteprojeto teve como principal autor o desembargador João Porfírio da Motta e teria sido inspirado no Código de processo de Pernambuco e também na dogmática processual penal francesa, da qual Motta era estudioso.
Antes de iniciar nossos breves comentários, deve-se dizer que há duas formas de estudar história do Direito. Na mais comum delas, o pesquisador esforça-se para encontrar institutos inusitados ou mesmo toscos para reforçar uma concepção evolucionista dos sistemas jurídicos, dando a artificial impressão de que o direito caminha irremediavelmente do pior para o melhor. Se quiséssemos seguir tal caminho, daríamos centro a artigos como o 273, que ingenuamente prevê que um menor retire as cédulas com os nomes dos jurados, bem à moda da época. Ou à extinção das ações penais por estupro devidas ao casamento de autor e vítima (artigo 22). Ou até mesmo a um curioso testemunho da época em que a República era verdadeiramente federativa, com a previsão da extradição do suspeito que escapasse para outro estado, prevista no artigo 94.
A outra, que consideramos mais acertada e fiel à realidade, é expor o passado como construtor do presente, mostrando que nosso direito faz parte de uma longa cadeia de contribuições, que vai dos romanos aos Padres da igreja, passando por jurisconsultos, pretores, burocratas, advogados e promotores de todas as épocas, por todo o mundo ocidental. Segundo essa visão, não há evoluções ou involuções, mas sim soluções que se alternam no tempo, ora trazendo à tona determinados institutos, ora afastando-os.
Seguindo esse raciocínio, poderíamos escolher ainda dois caminhos. O primeiro seria mostrar a imensa coincidência de institutos e dispositivos entre o CPP-PI e o atual Código de Processo Penal. De fato, a semelhança com o CPP de 1941, em especial com sua redação original é notável. A segunda, a que escolhemos, é mostrar que alguns dos debates, considerados por muitos como “atuais”, estão presentes e, por vezes, revolvidos no CPP-PI.
Poderemos, dessa forma, demonstrar que ao invés de buscar soluções de cunho meramente ideológica nos muitos vendedores de doutrina nacionais, ou buscar em sistemas completamente alheios ao nosso, notadamente o sistema acusatório anglo-saxão, a solução para alguns problemas do processo penal, autores e operadores teriam maior proveito ao olhar para a nossa própria tradição processual, que talvez seja tão rica quanto esquecida.
Antes de iniciar nossa breve análise, devemos comentar o espírito do Código Processual Penal do Estado do Piauí de 04 de julho de 1919, promulgado pelo governador Eurípedes Aguiar. Em linhas gerais, o mencionado código não apresenta grandes diferenças em relação à redação original do Código de Processo Penal de 1941. Os ritos são praticamente os mesmos, bem como a disciplina da maior parte dos recursos e da fase do Inquérito policial.
Os ritos são simples e céleres, bem como o regime dos recursos, com prazo único de cinco dias (art. 448) e bastante simples. Embora mais enxutos que os de 1941, os ritos ordinário e o do júri são bastante semelhantes, apresentando este último algumas distinções que nos parecem bastante saudáveis, como se verá.
A natureza do processo penal estampado no diploma é eminentemente Inquisitivo. Embora haja muita controvérsia sobre esta definição, havendo autores que inclusive negam que os conceitos utilizados na doutrina nacional tenham qualquer substrato fático/histórico, aqui afirmamos com certa segurança. Tal segurança nos vem da utilização de critérios apontados no mais importante trabalho sobre o tema desenvolvido em nosso país, qual seja, “sistemas processuais penais e seus princípios reitores, de Mauro Fonseca Andrade.
O autor, depois de estudar os mais diversos sistemas ditos “inquisitivos” fixou dois critérios para definir um sistema como tal:
- “O caráter prescindível da presença de um acusador distinto do juiz”: Esta uma marca explícita no CPP-PI de 1919. Nos crimes afiançáveis, se o Promotor não apresentasse denúncia no prazo legal, o juiz deveria iniciar a ação penal ex-officio, nos termos do artigo 6º. Nesse caso, o Promotor atuaria apenas como fiscal da lei, conforme dicção do artigo 8º. Nos crimes inafiançáveis, o Juiz, na ausência da denúncia nos prazos legais, deveria determinar a remessa do processo ao substituto legal, ou nomear promotor ad hoc, conforme o artigo 13.
- “o fato de o processo ser instaurado por acusação, notitia criminis ou de ofício pelo juiz.”: No processo penal do CPP-PI as possibilidades estão presentes expressamente. O inicio por acusação, no artigo 4º; ex-officio, no artigo 6º e por notícia crime, no caso de crimes cometidos por funcionário público, conforme o artigo 7º. Assim, não resta dúvida que, adotados os critérios acima expostos, que o código processual penal piauiense é um exemplo escolar de sistema inquisitivo, segundo os critérios elencados por Mauro Fonseca Andrade.
Cadeia de Custódia da prova
Muito se debate e inúmeras, e por vezes razoáveis, são as reclamações em torno da precária regulamentação da cadeia de custódia das provas no processo penal brasileiro. Argumentam alguns autores que a ausência de procedimentos que deem segurança de que a prova recolhida no local do crime é a mesma que será analisada pelos peritos enfraquece a confiança na prova pericial. Apenas em 2019, com a edição da Lei 13.964/2019, a cadeia de custódia ganhou local no Código de Processo Penal em vigor.
O CPP-PI, embora de forma tímida, já continha uma pequena disciplina sobre cadeia de custódia, nos seguintes termos:
“Art. 72. Serão sequestrados os instrumentos do crime e os objetos que constituam prova, sendo todos sellados e identificados com a assignatura do executor da diligencia. Estes objectos serão guardados no logar que para isso designar a autoridade.”
Embora muito simplório, o dispositivo positivava a necessidade de que os objetos fossem lacrados após a diligência, e com a firma daquele que a executou. Assim, ficariam de alguma maneira dificultadas a substituição da prova apreendida, ou mesmo as trocas acidentais.
A inviolabilidade de domicílio
Todos sabemos que a Constituição de 1988, em seu artigo 5º, XI, trata da inviolabilidade de domicílio. Diz a atual Carta Magna que a “casa é asilo inviolável”, todavia expõe algumas exceções: 1. Flagrante delito; 2. Desastre; 3. Para prestar socorro; 4. Por ordem judicial, durante o dia. Em tais hipóteses, é possível, no atual sistema constitucional, ingressar na residência de um cidadão brasileiro sem autorização. Nas três primeiras hipóteses é possível ingressar na residência mesmo durante o repouso noturno, inclusive para realizar prisão em flagrante.
No CPP-PI, no entanto, se a residência fosse de terceiro e este se recusasse a entregar o suspeito, as autoridades policiais não poderiam nela ingressar para efetuar a prisão em flagrante, vejamos:
“Art. 100. Achando-se ou entrando o réo em alguma casa, o executor intimará o dono ou morador para que o entregue, mostrando-lhe a ordem de prisão; se immediatamente não fôr obedecido, o executor tomará duas testemunhas e, sendo de dia, entrará á força na casa, arrombando as portas, se preciso fôr.
§1º Sendo noite, o executor, depois da intimação ao dono ou morador da casa, si não fôr obedecido, tomará todas as sahidas, tornando a casa incommunicavel e, logo que amanheça, arrombará as portas e tomará o preso.”
Como se lê, o CPP-PI reconhece uma maior tutela ao repouso noturno e a inviolabilidade de domicílio do que a Constituição de 1988, visto que: 1. Não autoriza o ingresso noturno para flagrante delito e 2. Para a entrada diurna, exige a presença de duas testemunhas, exigência inexistente no atual texto constitucional.
Ordem de julgamento de processos
O artigo 12 do novo Código de Processo Civil foi celebrado como um grande avanço para a organização dos serviços judiciários, eis que finalmente foi estabelecida uma ordem legal para o julgamento de processos. O parágrafo 2º, VIII, todavia, exclui expressamente os processos penais, certamente porque contingências como a existência de réus presos e o risco da prescrição, podem fazer com que os juízos afastem a ordem cronológica.
O Código de Processo Penal do Piauí continha uma ordem legal de preferência de julgamentos, que contemplava questões como o tempo de prisão e o tempo de pronúncia:
“Art. 287. A ordem do julgamento dos processos será determinada:
a. Pela preferência dos réos presos ou afiançados;
b. Entre réos presos, pela antiguidade da prisão e cada um;
c. Em igual antiguidade de prisão, pela prioridade de pronuncia;
d. Entre réos afiançados, também pela prioridade de pronuncia.”
Notem que o simples critério cronológico ou a proximidade da prescrição não eram levados em conta. A ordem era determinada especialmente pelo grau de contrição de liberdade experimentada pelo réu e pelo tempo que esta incidia. O Atual CPP adota praticamente os mesmos critérios para a formação da pauta do júri (art. 429).
Da oitiva de testemunhas no plenário do Júri
Em linhas gerais, as dinâmicas do plenário do júri no CCP-PI eram muito semelhantes à redação original do CPP de 1941. Havia, porém, sutis diferenças que, a nosso sentir, enriqueciam o procedimento, pois possibilitavam o maior desenvolvimento do contraditório.
A primeira dessas diferenças é a possibilidade de ouvir testemunhas em meio aos debates, depois de encerradas as falar de alguma das partes:
“Art. 303. As testemunhas da parte accusadora poderão se inquiridas depois da accusação ou da réplica, e as do acusado, depois da defesa ou da tréplica, conforme a parte requerer.”
Em ambos os casos, a parte adversa tinha direito a reperguntas. Sem dúvida esse formato, hoje perdido no tempo, propiciava incríveis oportunidades de acusação e defesa, diminuindo a distância temporal entre a produção da prova em plenário e os debates. No formato atual, muitas vezes a força do relato testemunhal é dissipado, em geral porque os depoimentos são colhidos pela manhã e após o qual os jurados seguem para o almoço. No início da tarde temos o, geralmente longo, depoimento do réu e só no fim da tarde ou mesmo a noite, se iniciam os debates. Assim, muitas vezes o cansaço impede o jurado de recordar o que disseram as testemunhas no início da sessão de julgamento. Sem dúvida, a solução do CPP-PI e mais interessante do que a praticada atualmente.
Do procedimento de apuração na esfera administrativa
O Código de Processo Penal do Piauí dedicava dois capítulos ao processo administrativo sancionador. O primeiro deles referia-se a infrações contra regulamentos e código do município e a regras sanitárias (art. 369 a 375). O segundo sobre a infração a termos de “bom viver” (art. 376 a 379). Este instituto consistia em um compromisso, espécie de “termo de juste de conduta”, quer deveria ser assinado por “vadios”, “bêbados habituais”, “prostitutas” e “mendigos”, que porventura perturbassem a ordem pública. Estava previsto na legislação do Império Brasileiro desde a Lei de 15 de outubro de 1827, que regulamentava a atividade dos Juízes de paz. Posteriormente foi incluído no Código de Processo Criminal de Primeira Instância de 1832. Por fim, havia a previsão do processo para apuração da infração disciplinar dos Juízes e demais funcionários da Justiça (art. 380 a 382). Nas três hipóteses o procedimento era extremamente simplificado.
Dos Recursos
A disciplina dos recursos também chama atenção pela sua simplicidade e aparente eficiência. Havia apenas seis recursos, a saber:
“Art. 439. Das decisões, despachos e sentenças nas causas penaes, caberão os seguintes recursos:
§1º. Na phase de formação da culpa e actos preparatórios para julgamento:
Recurso no sentido estricto ou propriamente dito.
§2º Na phase de julgamento:
a) Aggravo no auto do processo;
b) Appellação;
c) Protesto por novo julgamento;
d) Embargos;
e) Revista.
O sistema recursal não diferia tanto do atual, sendo certo que estavam presentes os recursos mais importantes, exceto aqueles de competência do Supremo Tribunal Federal que tinha lei própria. Todavia, havia algumas peculiaridades dignas de breve comentário.
A primeira delas é a que diz respeito aos prazos, que eram todos de 05 dias, para recursos voluntários, que necessariamente subiriam por instrumento, conforme o artigo 448. Mas o detalhe mais importante está no artigo 441, que prevê que nos crimes de ação penal pública, os recursos não serão prejudicados pela perda de prazo. Apenas o responsável seria responsabilizado administrativamente, mas a regra era que o efeito devolutivo fosse privilegiado. Solução contrária às ações penais privadas, em que poderia ocorrer a perda do direito ao recurso pelo decurso do prazo, segundo a dicção do artigo 441, § único.
Do Habeas Corpus
O Habeas Corpus, a ser impetrado por qualquer pessoa (art. 555, “a”), podia ser deferido de ofício pelo Magistrado competente, assim que tomasse conhecimento de qualquer ameaça ao direito de locomoção, segundo o artigo 556.
Como em outros pontos, em tudo o CPP-PI de 1919 lembra o CPP de 1941, havendo, não obstante, pequenas distinções que por vezes se revelam bem pensadas. No caso do Habeas Corpus há três bastante interessantes. Tratarei de suas no presente tópico e da última em separado, dada sua importância.
O artigo 561 trazia as consequências do reconhecimento de que o constrangimento ilegal contra o paciente de fato existiu. São três, a saber:
1. No caput, a condenação a custas para a autoridade que determinou o constrangimento ilegal;
2. No §1º, a previsão de que, constatada a má-fé por parte da mencionada autoridade, deve o juiz remeter os autos à promotoria para que se inicie procedimento criminal;
3. No §2º, a previsão de indenização ao paciente que sofreu coação ilegal, a ser paga pela autoridade que a determinou.
Por fim, o artigo 563 trazia a previsão expressa de que aquele que se recusasse a cumprir a ordem de soltura, determinada em sede de Habeas Corpus, deveria pagar multa de 40$000 a 100$, de quarenta mil réis a 100 contos de réis, soma substancialmente alta para o período. Portanto, havia mecanismos tanto para coibir a autoridade abusadora, quanto para compensar a vítima do erro ou abuso, como para punir aquele que se recusasse a cumprir o writ.
Da Audiência de Custódia
Encerraremos nossa análise com um tema atual e bastante caro aos organizadores desta coleção: a audiência de custódia. Embora em linhas gerais este instituto apareça como grande novidade no direito brasileiro, trazida à tona pelas convenções internacionais de direitos humanos e implantada pelo Conselho Nacional de Justiça, a leitura deste código nos mostra que o instituto já existiu em nosso país, de maneira bastante semelhante ao agora existente.
O procedimento estava previsto no capítulo que tratava do processamento de Habeas Corpus perante o juiz singular, transcrevo para salientar as semelhanças com o atual instituto da audiência de custódia:
“Art.565. Apresentada uma petição de habeas-corpus ao juiz, este verificando si é caso delle e si a petição se acha revestida dos requisitos do art. 557, mandará immediatamente expedir ordem para comparecimento ou para soltura do paciente, salvo si verificar evidentemente que elle não está nos casos do art. 560 deste Código.
§1º. A ordem de habeas-corpus será escripta pelo escrivão e assignada pelo juiz e deverá conter, no caso de comparecimento, determinação expressa ao detentor para que, no dia, hora e lugar determinados, venha apresentar o paciente e dar razões do seu procedimento, e, no de soltura, para que se o ponha em liberdade, si por outro motivo não se achar preso.
§2º. No caso de desobediência, será expedido mandado de prisão contra o detentor e depois autoado este e processado na forma da lei penal.
§3º Neste caso, o juiz providenciará para ser o paciente tirado da prisão, por meio de busca, e apresentado em juízo.”
Percebam que o procedimento guardava relação com o significado original do Habeas Corpus, qual seja, que as pessoas, vítimas de coação, fossem apresentadas fisicamente ao juiz, e assim pudessem se furtar a prisões ilegais por parte da autoridade real. Ao juiz cabia, inclusive, ante a recusa da autoridade coatora, resgatar o paciente, como se lê no parágrafo terceiro.
Após ouvir o paciente, o juiz decidia em 24 horas, sobre a manutenção ou não da soltura:
“Art. 571. Procedidas as diligencias legaes acima referidas, interrogado o detentor e o paciente, si comparecer, ouvido este ou seu advogado ou curador, quando menor, o juiz proferirá nos autos a sua decisão fundamentada, no prazo máximo de 24 horas, concedendo ou não a ordem impetrada.”
Assim, em cada detalhe é possível perceber a enorme semelhança entre o procedimento de Habeas Corpus ante o juiz singular, no CPP-PI de 1919 e o procedimento da audiência de custódia prevista na resolução 213 do CNJ, não sendo exagero dizer que se trata do mesmíssimo instituto.
Considerações finais
Da leitura do interessantíssimo Código de Processo Penal da Província do Piauí de 1919, pude chegar a duas conclusões. A primeira é perceber como é superficial e enganosa a visão de alguns juristas segundo os quais o direito passa por um processo de “evolução”, em que a cada ano, e cada nova lei, tudo vai se aperfeiçoando, numa infinita marcha que leva do que é pior para o que é melhor. Tal leitura não resiste a qualquer estudo histórico minimamente comprometida e é própria do ambiente marcadamente ideológico em que se converteu nossa academia jurídica A segunda é a de que muito ganharíamos se procurássemos soluções para os desafios da reforma processual penal, estudando a tradição nacional. Todo sistema jurídico tem uma história e deve ao passado. Muito perdemos quando não o acessamos. É como se nós brasileiros precisássemos “inventar a roda” a cada geração, e por desinteresse e desamor ao passado, nunca chegássemos a um bom presente.
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O Código Processual Penal da província do Piauí data de 1919. O anteprojeto teve como principal autor o desembargador João Porfírio da Motta e teria sido inspirado no Código de processo de Pernambuco e também na dogmática processual penal francesa, da qual Motta era estudioso.
Antes de iniciar nossos breves comentários, deve-se dizer que há duas formas de estudar história do Direito. Na mais comum delas, o pesquisador esforça-se para encontrar institutos inusitados ou mesmo toscos para reforçar uma concepção evolucionista dos sistemas jurídicos, dando a artificial impressão de que o direito caminha irremediavelmente do pior para o melhor. Se quiséssemos seguir tal caminho, daríamos centro a artigos como o 273, que ingenuamente prevê que um menor retire as cédulas com os nomes dos jurados, bem à moda da época. Ou à extinção das ações penais por estupro devidas ao casamento de autor e vítima (artigo 22). Ou até mesmo a um curioso testemunho da época em que a República era verdadeiramente federativa, com a previsão da extradição do suspeito que escapasse para outro estado, prevista no artigo 94.
A outra, que consideramos mais acertada e fiel à realidade, é expor o passado como construtor do presente, mostrando que nosso direito faz parte de uma longa cadeia de contribuições, que vai dos romanos aos Padres da igreja, passando por jurisconsultos, pretores, burocratas, advogados e promotores de todas as épocas, por todo o mundo ocidental. Segundo essa visão, não há evoluções ou involuções, mas sim soluções que se alternam no tempo, ora trazendo à tona determinados institutos, ora afastando-os.
Seguindo esse raciocínio, poderíamos escolher ainda dois caminhos. O primeiro seria mostrar a imensa coincidência de institutos e dispositivos entre o CPP-PI e o atual Código de Processo Penal. De fato, a semelhança com o CPP de 1941, em especial com sua redação original é notável. A segunda, a que escolhemos, é mostrar que alguns dos debates, considerados por muitos como “atuais”, estão presentes e, por vezes, revolvidos no CPP-PI.
Poderemos, dessa forma, demonstrar que ao invés de buscar soluções de cunho meramente ideológica nos muitos vendedores de doutrina nacionais, ou buscar em sistemas completamente alheios ao nosso, notadamente o sistema acusatório anglo-saxão, a solução para alguns problemas do processo penal, autores e operadores teriam maior proveito ao olhar para a nossa própria tradição processual, que talvez seja tão rica quanto esquecida.
Antes de iniciar nossa breve análise, devemos comentar o espírito do Código Processual Penal do Estado do Piauí de 04 de julho de 1919, promulgado pelo governador Eurípedes Aguiar. Em linhas gerais, o mencionado código não apresenta grandes diferenças em relação à redação original do Código de Processo Penal de 1941. Os ritos são praticamente os mesmos, bem como a disciplina da maior parte dos recursos e da fase do Inquérito policial.
Os ritos são simples e céleres, bem como o regime dos recursos, com prazo único de cinco dias (art. 448) e bastante simples. Embora mais enxutos que os de 1941, os ritos ordinário e o do júri são bastante semelhantes, apresentando este último algumas distinções que nos parecem bastante saudáveis, como se verá.
A natureza do processo penal estampado no diploma é eminentemente Inquisitivo. Embora haja muita controvérsia sobre esta definição, havendo autores que inclusive negam que os conceitos utilizados na doutrina nacional tenham qualquer substrato fático/histórico, aqui afirmamos com certa segurança. Tal segurança nos vem da utilização de critérios apontados no mais importante trabalho sobre o tema desenvolvido em nosso país, qual seja, “sistemas processuais penais e seus princípios reitores, de Mauro Fonseca Andrade.
O autor, depois de estudar os mais diversos sistemas ditos “inquisitivos” fixou dois critérios para definir um sistema como tal:
- “O caráter prescindível da presença de um acusador distinto do juiz”: Esta uma marca explícita no CPP-PI de 1919. Nos crimes afiançáveis, se o Promotor não apresentasse denúncia no prazo legal, o juiz deveria iniciar a ação penal ex-officio, nos termos do artigo 6º. Nesse caso, o Promotor atuaria apenas como fiscal da lei, conforme dicção do artigo 8º. Nos crimes inafiançáveis, o Juiz, na ausência da denúncia nos prazos legais, deveria determinar a remessa do processo ao substituto legal, ou nomear promotor ad hoc, conforme o artigo 13.
- “o fato de o processo ser instaurado por acusação, notitia criminis ou de ofício pelo juiz.”: No processo penal do CPP-PI as possibilidades estão presentes expressamente. O inicio por acusação, no artigo 4º; ex-officio, no artigo 6º e por notícia crime, no caso de crimes cometidos por funcionário público, conforme o artigo 7º. Assim, não resta dúvida que, adotados os critérios acima expostos, que o código processual penal piauiense é um exemplo escolar de sistema inquisitivo, segundo os critérios elencados por Mauro Fonseca Andrade.
Cadeia de Custódia da prova
Muito se debate e inúmeras, e por vezes razoáveis, são as reclamações em torno da precária regulamentação da cadeia de custódia das provas no processo penal brasileiro. Argumentam alguns autores que a ausência de procedimentos que deem segurança de que a prova recolhida no local do crime é a mesma que será analisada pelos peritos enfraquece a confiança na prova pericial. Apenas em 2019, com a edição da Lei 13.964/2019, a cadeia de custódia ganhou local no Código de Processo Penal em vigor.
O CPP-PI, embora de forma tímida, já continha uma pequena disciplina sobre cadeia de custódia, nos seguintes termos:
“Art. 72. Serão sequestrados os instrumentos do crime e os objetos que constituam prova, sendo todos sellados e identificados com a assignatura do executor da diligencia. Estes objectos serão guardados no logar que para isso designar a autoridade.”
Embora muito simplório, o dispositivo positivava a necessidade de que os objetos fossem lacrados após a diligência, e com a firma daquele que a executou. Assim, ficariam de alguma maneira dificultadas a substituição da prova apreendida, ou mesmo as trocas acidentais.
A inviolabilidade de domicílio
Todos sabemos que a Constituição de 1988, em seu artigo 5º, XI, trata da inviolabilidade de domicílio. Diz a atual Carta Magna que a “casa é asilo inviolável”, todavia expõe algumas exceções: 1. Flagrante delito; 2. Desastre; 3. Para prestar socorro; 4. Por ordem judicial, durante o dia. Em tais hipóteses, é possível, no atual sistema constitucional, ingressar na residência de um cidadão brasileiro sem autorização. Nas três primeiras hipóteses é possível ingressar na residência mesmo durante o repouso noturno, inclusive para realizar prisão em flagrante.
No CPP-PI, no entanto, se a residência fosse de terceiro e este se recusasse a entregar o suspeito, as autoridades policiais não poderiam nela ingressar para efetuar a prisão em flagrante, vejamos:
“Art. 100. Achando-se ou entrando o réo em alguma casa, o executor intimará o dono ou morador para que o entregue, mostrando-lhe a ordem de prisão; se immediatamente não fôr obedecido, o executor tomará duas testemunhas e, sendo de dia, entrará á força na casa, arrombando as portas, se preciso fôr.
§1º Sendo noite, o executor, depois da intimação ao dono ou morador da casa, si não fôr obedecido, tomará todas as sahidas, tornando a casa incommunicavel e, logo que amanheça, arrombará as portas e tomará o preso.”
Como se lê, o CPP-PI reconhece uma maior tutela ao repouso noturno e a inviolabilidade de domicílio do que a Constituição de 1988, visto que: 1. Não autoriza o ingresso noturno para flagrante delito e 2. Para a entrada diurna, exige a presença de duas testemunhas, exigência inexistente no atual texto constitucional.
Ordem de julgamento de processos
O artigo 12 do novo Código de Processo Civil foi celebrado como um grande avanço para a organização dos serviços judiciários, eis que finalmente foi estabelecida uma ordem legal para o julgamento de processos. O parágrafo 2º, VIII, todavia, exclui expressamente os processos penais, certamente porque contingências como a existência de réus presos e o risco da prescrição, podem fazer com que os juízos afastem a ordem cronológica.
O Código de Processo Penal do Piauí continha uma ordem legal de preferência de julgamentos, que contemplava questões como o tempo de prisão e o tempo de pronúncia:
“Art. 287. A ordem do julgamento dos processos será determinada:
a. Pela preferência dos réos presos ou afiançados;
b. Entre réos presos, pela antiguidade da prisão e cada um;
c. Em igual antiguidade de prisão, pela prioridade de pronuncia;
d. Entre réos afiançados, também pela prioridade de pronuncia.”
Notem que o simples critério cronológico ou a proximidade da prescrição não eram levados em conta. A ordem era determinada especialmente pelo grau de contrição de liberdade experimentada pelo réu e pelo tempo que esta incidia. O Atual CPP adota praticamente os mesmos critérios para a formação da pauta do júri (art. 429).
Da oitiva de testemunhas no plenário do Júri
Em linhas gerais, as dinâmicas do plenário do júri no CCP-PI eram muito semelhantes à redação original do CPP de 1941. Havia, porém, sutis diferenças que, a nosso sentir, enriqueciam o procedimento, pois possibilitavam o maior desenvolvimento do contraditório.
A primeira dessas diferenças é a possibilidade de ouvir testemunhas em meio aos debates, depois de encerradas as falar de alguma das partes:
“Art. 303. As testemunhas da parte accusadora poderão se inquiridas depois da accusação ou da réplica, e as do acusado, depois da defesa ou da tréplica, conforme a parte requerer.”
Em ambos os casos, a parte adversa tinha direito a reperguntas. Sem dúvida esse formato, hoje perdido no tempo, propiciava incríveis oportunidades de acusação e defesa, diminuindo a distância temporal entre a produção da prova em plenário e os debates. No formato atual, muitas vezes a força do relato testemunhal é dissipado, em geral porque os depoimentos são colhidos pela manhã e após o qual os jurados seguem para o almoço. No início da tarde temos o, geralmente longo, depoimento do réu e só no fim da tarde ou mesmo a noite, se iniciam os debates. Assim, muitas vezes o cansaço impede o jurado de recordar o que disseram as testemunhas no início da sessão de julgamento. Sem dúvida, a solução do CPP-PI e mais interessante do que a praticada atualmente.
Do procedimento de apuração na esfera administrativa
O Código de Processo Penal do Piauí dedicava dois capítulos ao processo administrativo sancionador. O primeiro deles referia-se a infrações contra regulamentos e código do município e a regras sanitárias (art. 369 a 375). O segundo sobre a infração a termos de “bom viver” (art. 376 a 379). Este instituto consistia em um compromisso, espécie de “termo de juste de conduta”, quer deveria ser assinado por “vadios”, “bêbados habituais”, “prostitutas” e “mendigos”, que porventura perturbassem a ordem pública. Estava previsto na legislação do Império Brasileiro desde a Lei de 15 de outubro de 1827, que regulamentava a atividade dos Juízes de paz. Posteriormente foi incluído no Código de Processo Criminal de Primeira Instância de 1832. Por fim, havia a previsão do processo para apuração da infração disciplinar dos Juízes e demais funcionários da Justiça (art. 380 a 382). Nas três hipóteses o procedimento era extremamente simplificado.
Dos Recursos
A disciplina dos recursos também chama atenção pela sua simplicidade e aparente eficiência. Havia apenas seis recursos, a saber:
“Art. 439. Das decisões, despachos e sentenças nas causas penaes, caberão os seguintes recursos:
§1º. Na phase de formação da culpa e actos preparatórios para julgamento:
Recurso no sentido estricto ou propriamente dito.
§2º Na phase de julgamento:
a) Aggravo no auto do processo;
b) Appellação;
c) Protesto por novo julgamento;
d) Embargos;
e) Revista.
O sistema recursal não diferia tanto do atual, sendo certo que estavam presentes os recursos mais importantes, exceto aqueles de competência do Supremo Tribunal Federal que tinha lei própria. Todavia, havia algumas peculiaridades dignas de breve comentário.
A primeira delas é a que diz respeito aos prazos, que eram todos de 05 dias, para recursos voluntários, que necessariamente subiriam por instrumento, conforme o artigo 448. Mas o detalhe mais importante está no artigo 441, que prevê que nos crimes de ação penal pública, os recursos não serão prejudicados pela perda de prazo. Apenas o responsável seria responsabilizado administrativamente, mas a regra era que o efeito devolutivo fosse privilegiado. Solução contrária às ações penais privadas, em que poderia ocorrer a perda do direito ao recurso pelo decurso do prazo, segundo a dicção do artigo 441, § único.
Do Habeas Corpus
O Habeas Corpus, a ser impetrado por qualquer pessoa (art. 555, “a”), podia ser deferido de ofício pelo Magistrado competente, assim que tomasse conhecimento de qualquer ameaça ao direito de locomoção, segundo o artigo 556.
Como em outros pontos, em tudo o CPP-PI de 1919 lembra o CPP de 1941, havendo, não obstante, pequenas distinções que por vezes se revelam bem pensadas. No caso do Habeas Corpus há três bastante interessantes. Tratarei de suas no presente tópico e da última em separado, dada sua importância.
O artigo 561 trazia as consequências do reconhecimento de que o constrangimento ilegal contra o paciente de fato existiu. São três, a saber:
1. No caput, a condenação a custas para a autoridade que determinou o constrangimento ilegal;
2. No §1º, a previsão de que, constatada a má-fé por parte da mencionada autoridade, deve o juiz remeter os autos à promotoria para que se inicie procedimento criminal;
3. No §2º, a previsão de indenização ao paciente que sofreu coação ilegal, a ser paga pela autoridade que a determinou.
Por fim, o artigo 563 trazia a previsão expressa de que aquele que se recusasse a cumprir a ordem de soltura, determinada em sede de Habeas Corpus, deveria pagar multa de 40$000 a 100$, de quarenta mil réis a 100 contos de réis, soma substancialmente alta para o período. Portanto, havia mecanismos tanto para coibir a autoridade abusadora, quanto para compensar a vítima do erro ou abuso, como para punir aquele que se recusasse a cumprir o writ.
Da Audiência de Custódia
Encerraremos nossa análise com um tema atual e bastante caro aos organizadores desta coleção: a audiência de custódia. Embora em linhas gerais este instituto apareça como grande novidade no direito brasileiro, trazida à tona pelas convenções internacionais de direitos humanos e implantada pelo Conselho Nacional de Justiça, a leitura deste código nos mostra que o instituto já existiu em nosso país, de maneira bastante semelhante ao agora existente.
O procedimento estava previsto no capítulo que tratava do processamento de Habeas Corpus perante o juiz singular, transcrevo para salientar as semelhanças com o atual instituto da audiência de custódia:
“Art.565. Apresentada uma petição de habeas-corpus ao juiz, este verificando si é caso delle e si a petição se acha revestida dos requisitos do art. 557, mandará immediatamente expedir ordem para comparecimento ou para soltura do paciente, salvo si verificar evidentemente que elle não está nos casos do art. 560 deste Código.
§1º. A ordem de habeas-corpus será escripta pelo escrivão e assignada pelo juiz e deverá conter, no caso de comparecimento, determinação expressa ao detentor para que, no dia, hora e lugar determinados, venha apresentar o paciente e dar razões do seu procedimento, e, no de soltura, para que se o ponha em liberdade, si por outro motivo não se achar preso.
§2º. No caso de desobediência, será expedido mandado de prisão contra o detentor e depois autoado este e processado na forma da lei penal.
§3º Neste caso, o juiz providenciará para ser o paciente tirado da prisão, por meio de busca, e apresentado em juízo.”
Percebam que o procedimento guardava relação com o significado original do Habeas Corpus, qual seja, que as pessoas, vítimas de coação, fossem apresentadas fisicamente ao juiz, e assim pudessem se furtar a prisões ilegais por parte da autoridade real. Ao juiz cabia, inclusive, ante a recusa da autoridade coatora, resgatar o paciente, como se lê no parágrafo terceiro.
Após ouvir o paciente, o juiz decidia em 24 horas, sobre a manutenção ou não da soltura:
“Art. 571. Procedidas as diligencias legaes acima referidas, interrogado o detentor e o paciente, si comparecer, ouvido este ou seu advogado ou curador, quando menor, o juiz proferirá nos autos a sua decisão fundamentada, no prazo máximo de 24 horas, concedendo ou não a ordem impetrada.”
Assim, em cada detalhe é possível perceber a enorme semelhança entre o procedimento de Habeas Corpus ante o juiz singular, no CPP-PI de 1919 e o procedimento da audiência de custódia prevista na resolução 213 do CNJ, não sendo exagero dizer que se trata do mesmíssimo instituto.
Considerações finais
Da leitura do interessantíssimo Código de Processo Penal da Província do Piauí de 1919, pude chegar a duas conclusões. A primeira é perceber como é superficial e enganosa a visão de alguns juristas segundo os quais o direito passa por um processo de “evolução”, em que a cada ano, e cada nova lei, tudo vai se aperfeiçoando, numa infinita marcha que leva do que é pior para o que é melhor. Tal leitura não resiste a qualquer estudo histórico minimamente comprometida e é própria do ambiente marcadamente ideológico em que se converteu nossa academia jurídica A segunda é a de que muito ganharíamos se procurássemos soluções para os desafios da reforma processual penal, estudando a tradição nacional. Todo sistema jurídico tem uma história e deve ao passado. Muito perdemos quando não o acessamos. É como se nós brasileiros precisássemos “inventar a roda” a cada geração, e por desinteresse e desamor ao passado, nunca chegássemos a um bom presente.
ISBN | 978-65-5959-188-6 |
Dimensões | 23 x 15.5 x 2 |
Tipo do Livro | Impresso |
Páginas | 130 |
Edição | 1 |
Idioma | Português |
Editora | Editora Thoth |
Publicação | Março/2022 |
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Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Recife da Universidade Federal de Pernambuco UFPE. Advogado. Procurador do Estado. Professor Universitário de Filosofia do Direito e Direito Tributário. Especialista em Direito Processual pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Especialista em Direito Tributário pela Universidade Gama Filho – RJ. Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade Federal de Pernambuco UFPE. Doutorando em Direito Administrativo (PUC/SP). Ex-juiz jurista do TRE-PI. Ex- Presidente da OAB-PI. Ex-presidente do Colégio Brasileiro de Advogados do Brasil, atual representante estadual no Estado do Piauí do Instituto dos Advogados do Brasileiros IAB, Presidente do Instituto dos Advogados Piauienses – IAP e Presidente do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados – CESA Seccional Piauí.Doutor em Ciências Criminais pela PUCRS, professor adjunto da Universidade Estadual do Piauí, advogado criminalista.
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