APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO
Os Códigos de Processo Penal dos Estados constituíram fato histórico de poucos conhecido e tampouco estudado, vis-à-vis a escassez de artigos jurídicos ou, sequer, de um livro dedicado a esse tema.
Tal se deve, creio, acima de tudo à difundida falta de interesse pela história das ideias jurídicas – o que é de se lamentar profundamente, porque construímos uma nação que conhece parcamente seu passado – mas também por um ainda remanescente descaso pela ciência processual penal, que, até há algum tempo atrás, justificava, cum laude, o epíteto de Cinderela, que lhe cunhara Carnellutti, ante sua precariedade epistemológica e estrutural no âmbito das ciências jurídicas. Felizmente, nos últimos anos, como que ungida por uma varinha mágica, essa gata borralheira transformou-se em uma dama, com todo o esplendor de sua beleza, a qual, evidentemente, só os que a apreciam sabe reconhecer.
Nesse contexto, sobreleva a notável iniciativa do Professor Doutor Mauro Fonseca Andrade, de dar visibilidade a algo que jaz oculto na literatura e no debate jurídicos. Mas este projeto editorial, que tenho a honra e o grande privilégio de apresentar, não surpreende a quem conhece o seu idealizador.
Mauro Fonseca Andrade, a par de suas qualificações acadêmicas e profissionais, de todos conhecidas, é um pensador diferenciado do Direito, não somente por sua acurada inteligência e respeitabilidade de que goza entre os pares, mas, nomeadamente, por sua curiosidade científica – motor de todas as descobertas e revelações – que tem notabilizado sua produção literária, com destaque para temas de que não se ocupa a maioria, fundamentais, porém, para entender as instituições jurídicas do presente, com âncora epistemológica fincada no estudo dos sistemas processuais penais responsáveis pela configuração dos códigos nacionais ao longo dos séculos.
Somente alguém com semelhantes coragem e visão de mundo se disporia a coordenar uma obra de tamanha magnitude, cuja repercussão, estou absolutamente certo irá despertar, na Academia e no Foro, o indispensável interesse por esse importante segmento da história de nossas instituições jurídicas.
Talvez se possa dizer que o período em que os Estados Unidos do Brazil editaram (quase todos) seus respectivos códigos de processo penal seja o que simbolizou uma mais significativa descentralização do poder, ao longo dos 520 anos de nossa história.
Bem observou, a propósito, o Ministro Sepúlveda Pertence, ao proferir voto no julgamento da Reclamação n.º 370-1/MT: “No Brasil, a escalada centralista iniciada com a Constituição de 34, acentua-se nas posteriores, ainda quando se faça completa abstração das fases de paroxismo unitarista dos regimes autoritários de 37 e 67/69, para só levar em conta os textos democratizantes de 46 e 88”.
Houve, de fato, essa escalada centralizadora em nossa história política, mas, em verdade, tudo indica que apenas retomamos uma característica de nosso Estado, o qual, desde seus primórdios, com as Capitanias Hereditárias – em relação às quais uma aparente descentralização administrativa e política ocultava o poder central da Coroa – ostentou relações de poder divididas entre governantes e representantes da elite econômica e política.
A constitucionalização dessa escolha veio com a Carta Política de 1891, cujo art. 1º proclamou, em língua original: “Art. 1º. A Nação Brasileira adopta como fórma de governo, sob o regimen representativo, a Republica Federativa proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitue-se, por união perpetua e indissoluvel das suas antigas provincias, em Estados Unidos do Brasil.” Desde então, até 1930 – quando, por decreto, Getúlio Vargas dissolveu o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas Estaduais e as Câmaras Municipais, além de cassar os mandatos dos Governadores e Prefeitos, substituídos por interventores – vivenciamos um momento distinto na relação entre o poder central e as unidades federadas.
A inspiração desse federalismo veio, como sabido, dos Estados Unidos da América, formados inicialmente pelas 13 colônias que se desprenderam da Coroa britânica. Todavia, enquanto o modelo federativo estadunidense sempre foi do tipo centrífugo, caracterizado por uma maior descentralização do poder, com distribuição ampla de competências com os Estados e Municípios, o brasileiro nunca abriu mão de um maior poder central, ainda que, nesse período da Primeira República, tenha delegado aos estados, no que interessa, a competência para legislar em matéria processual.
Copiamos a forma de governo, copiamos o modelo da Suprema Corte (embora a nossa, inicialmente, contasse com 15 membros, ao invés dos 9 justices da homólogo tribunal norteamericano) e copiamos outros “produtos” dos EUA, como ilustra Aliomar Baleeiro:
Por outro lado, o establishment dos velhos políticos, dos barões, viscondes e marqueses, banqueiros e exportadores, desfalcadas as fileiras pela deserção dos fazendeiros e militares, não conseguira captar a lealdade dos filhos, os jovens, que desde 1870 se deixavam fascinar pela sereia republicana, ou pelo positivismo e pelas instituições norte-americanas, às quais creditavam o formidável desenvolvimento econômico dos Estados Unidos nos dois decênios após o término da Guerra de Secessão. Nas classes médias, muitas crianças nascidas por esse tempo ganhavam como prenome “Washington”, “Hamilton”, “Jefferson”, do mesmo modo que um menino nascido em meio do século XIX, no fastígio da Carta de 1824, fora batizado Benjamin Constant Botelho de Magalhães (CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS Volume II, 1891. Brasília: Senado Federal, 2012).
Foi nessa ambiência que vieram, paulatinamente, os Códigos de Processo Penal dos Estados, a saber:
Amazonas (Lei nº 334, de 14/2/1901), Bahia (Lei nº 1.119, de 21/8/1915), Ceará (Lei nº 1950, de 24/12/1921), Espirito Santo (Decreto nº 1.891, de 26/9/1914), Goiás (Lei nº 659, de 5/6/1920), Maranhão (Lei nº 507, de 22/3/1909), Minas Gerais (Decreto nº 7.259, de 14/6/1926), Paraíba (Lei nº 336, de 21/10/1910), Paraná (Lei nº 1.916, de 23/2/1920), Pernambuco (Lei nº 1.750, de 1925), Piauí (Lei nº 962, de 4/7/1919), Rio Grande do Norte (Lei nº 449, de 30/11/1918), Rio Grande do Sul (Lei nº 24, de 15/8/1898), Rio de Janeiro (Lei nº 1.137, de 20 de dezembro de 1912), Santa Catarina (Lei nº 1.526, de 14/11/1925), Sergipe (Lei nº 753, de 7/9/1918) e Distrito Federal (Decreto nº 16.751, de 31/12/1924.
Algumas peculiaridades dessas leis processuais merecem registro.
A primeira delas é que São Paulo, Alagoas, Mato Grosso e Pará não editaram legislação processual própria, preferindo seguir sob a regência do Código de Processo Criminal da Primeira Instância, de 1832, e das leis posteriores que o modificaram, especialmente a Lei nº 261, de 3/12/1941 (que inaugurou o período conhecido como policialismo judiciário, com sobreposição de funções policiais e judiciais) e seu respectivo Regulamento nº 120, e a Lei nº 2.033, de 20/9/11871, a qual, entre outras alterações, instituiu o inquérito policial.
Em relação ao estado de São Paulo, aliás, José Henrique Pierangelli pontua que, por haver preferido seguir a legislação imperial, “deve ter-se convertido em verdadeiro martírio para os profissionais da época” lidar com um conjunto de leis “complexo, fragmentário, desprovido de unidade e de sistema” (Processo Penal: evolução histórica e fontes legislativas, Bauru: Jalovi, 1983, p. 164).
Situação particular e curiosa se verificou na edição do CPP do estado do Rio Grande do Sul: além de ter sido o primeiro entre os congêneres (enquanto o último foi o da Paraíba, em 1932), bem como de ter sido o único a viger ainda no Século XIX (1898), sua elaboração foi incumbida ao então Desembargador Antonio Augusto Borges de Medeiros, o qual acabou por promulgar o código já como Presidente da unidade federada, sucedendo quem o designara, Júlio de Castilhos.
A propósito, muitos dos códigos foram elaborados por comissões de juristas, mas houve aqueles – como o sul rio grandense – em que se incumbiu tal missão a uma única pessoa. E o destaque vai, nesse particular, ao Código de Processo Penal da Bahia, que, em formato de código unitário, i.e., com disposições de processos civil, comercial e criminal, teve o Livro III, sobre o Processo Criminal, redigido pelo jurista Eduardo Espínola.
Aliás, entre os códigos unitários, mencione-se, por sua abrangência, o de Santa Catarina, composto de nada menos do que 2.606 artigos (quiçá o mais extenso diploma legal já produzido no Brasil), e que reservou os capítulos X a XV para os dispositivos processuais penais.
Por sua vez, o Distrito Federal foi o único dos códigos a vir assinado não por governadores ou presidentes de estados, mas pelo Presidente da República, Artur Bernardes.
Os códigos estaduais, salvo uma ou outra disposição tópica, não inovaram substancialmente em relação à legislação do Império e tampouco se diferenciavam muito entre eles, o que acabou por permitir uma certa uniformidade na aplicação do direito processual nas unidades federadas. Diversa, porém, foi a assertiva de Frederico Marques, para quem “o golpe dado na unidade processual não trouxe vantagem alguma para nossas instituições jurídicas; ao contrário, essa fragmentação contribuiu para que se estabelecesse acentuada diversidade de sistema, o que, sem dúvida alguma, prejudicou a aplicação da lei penal.” (Elementos de Direito Processual Penal, v. 1, Rio-São Paulo: Forense, 1965, p. 102).
Sob outra perspectiva, os códigos estaduais e o direito processual penal pátrio receberam críticas de Vicente Ráo, autor do Projeto de Código de Processo Penal apresentado a Getúlio Vargas em 1935, em cuja Exposição de Motivos assinalou:
Nosso direito processual, no crime, mesmo nos Estados onde se decretaram novos códigos, ressente-se, em suas linhas gerais, do formalismo excessivo e emaranhado, que a tradição nos legou. Faltou-nos, em matéria criminal, o equivalente do regulamento n. 737, de 1850, que, no processo cível, pode ainda hoje ser invocado como modelo de simplicidade, concisão e clareza.
Ainda que se possa dar razão a tais observações, não há como negar o valor histórico e a importância dessa pletora de leis processuais penais da Primeira República, adornadas, nesta magnífica coleção, por substanciosos e fecundos comentários a cada um dos códigos estaduais, na pena de juristas de escol.
É importante sublinhar, sem embargo, que a proclamação da República e a maior autonomia concedida aos estados não foram capazes de engendrar novos rumos ao país, que, até então, vivenciara quase sete décadas de um regime monárquico e mais de três séculos de uma colonização predatória.
Em verdade, como já anotei alhures (Rumo a um processo penal democrático. In Justiça criminal e democracia, Barcelona: Marcial Pons, 2013, p. 23-58) éramos, ainda no Século XIX, um país rudimentar, longe, ao menos culturalmente, dos padrões vigentes em outros povos colonizados precipuamente por ingleses e até mesmo dos povos ocupados por espanhóis. Portugal proibia à Colônia qualquer iniciativa que desse ao Brasil alguma autonomia cultural, econômica ou política.
Não havia liberdade de empreender; era vedado estabelecer tipografias e importar livros e não havia ensino superior. Em um tal ambiente cultural hostil à assimilação dos novos ares respirados no Hemisfério Norte, a formação de letrados em Direito se restringia a uma pequena minoria de jovens integrantes da elite econômica e política brasileira, os quais, antes que se instalassem as Faculdades de Direito de São Paulo e de Olinda, em 1827, quase invariavelmente se graduavam na Universidade de Coimbra. Dali retornavam com o título de bacharéis, para ocupar cargos públicos ou simplesmente o espaço social destinado aos que exibiam tão rara qualificação profissional. Eram doutores em um país de ignorantes, em meio a uma “sociedade liberal de fachada” (...) e “antidemocrática em seu âmago” (FREITAS, RICARDO DE BRITO A. P. As raízes do Positivismo Penal no Brasil, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 237).
Tínhamos, assim, uma cultura jurídica vinculada a tradições coloniais e imperiais, cultivada pelo bacharelismo que produziu uma elite intelectual distante da realidade brasileira e das exigências de um mundo industrializado que começava a despontar, com a migração de grandes segmentos da população rural para os centros urbanos e os naturais problemas que isso representava em uma sociedade recém-saída de uma economia que, durante séculos, dependeu de (e explorou a) mão de obra escrava.
Isso tudo confirmava a opinião de que vivíamos, na República Velha, por um momento de adaptação, imersos ainda em “estruturas de dominação tradicional, como o mandonismo, o coronelismo e outros” (BOTELHO, André & SCHWARCZ, Lilia Moritz. Cidadania, um projeto em construção. Minorias, justiça e direitos. São Paulo: Claro Enigma, 2012, p. 20).
Essa herança cultural de nosso povo ainda se manifesta, explícita ou implicitamente, em nosso cotidiano, mas, por certo, muito avançamos, inclusive no âmbito do Direito positivado, embora, no tocante ao Código de Processo Penal, estejamos carentes de um novo diploma que se harmonize, em sua estrutura e em sua dinâmica, à Constituição da República.
A presente obra representa, assim, um marco na história do mercado editorial brasileiro e, mais ainda, consubstancia a vitória de um pensamento dedicado às ciências processuais, funcionalmente vinculadas aos valores, princípios, regras e diretrizes que orientam a convivência dos povos, sob o governo das leis.
E, a esse propósito, a coleção ora ofertada ao público brasileiro – pela iniciativa do Prof. Mauro Fonseca Andrade – colmata uma ignominiosa lacuna em nossa tradição acadêmica. Que saibamos reconhecer o quanto já percorremos e os passos que ainda precisamos trilhar, rumo a um processo penal cada vez mais moderno, democrático, efetivo e, acima de tudo, servo dos valores que compõem a ideia de uma Justiça Criminal iluminada pela razão humana!
APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO
Os Códigos de Processo Penal dos Estados constituíram fato histórico de poucos conhecido e tampouco estudado, vis-à-vis a escassez de artigos jurídicos ou, sequer, de um livro dedicado a esse tema.
Tal se deve, creio, acima de tudo à difundida falta de interesse pela história das ideias jurídicas – o que é de se lamentar profundamente, porque construímos uma nação que conhece parcamente seu passado – mas também por um ainda remanescente descaso pela ciência processual penal, que, até há algum tempo atrás, justificava, cum laude, o epíteto de Cinderela, que lhe cunhara Carnellutti, ante sua precariedade epistemológica e estrutural no âmbito das ciências jurídicas. Felizmente, nos últimos anos, como que ungida por uma varinha mágica, essa gata borralheira transformou-se em uma dama, com todo o esplendor de sua beleza, a qual, evidentemente, só os que a apreciam sabe reconhecer.
Nesse contexto, sobreleva a notável iniciativa do Professor Doutor Mauro Fonseca Andrade, de dar visibilidade a algo que jaz oculto na literatura e no debate jurídicos. Mas este projeto editorial, que tenho a honra e o grande privilégio de apresentar, não surpreende a quem conhece o seu idealizador.
Mauro Fonseca Andrade, a par de suas qualificações acadêmicas e profissionais, de todos conhecidas, é um pensador diferenciado do Direito, não somente por sua acurada inteligência e respeitabilidade de que goza entre os pares, mas, nomeadamente, por sua curiosidade científica – motor de todas as descobertas e revelações – que tem notabilizado sua produção literária, com destaque para temas de que não se ocupa a maioria, fundamentais, porém, para entender as instituições jurídicas do presente, com âncora epistemológica fincada no estudo dos sistemas processuais penais responsáveis pela configuração dos códigos nacionais ao longo dos séculos.
Somente alguém com semelhantes coragem e visão de mundo se disporia a coordenar uma obra de tamanha magnitude, cuja repercussão, estou absolutamente certo irá despertar, na Academia e no Foro, o indispensável interesse por esse importante segmento da história de nossas instituições jurídicas.
Talvez se possa dizer que o período em que os Estados Unidos do Brazil editaram (quase todos) seus respectivos códigos de processo penal seja o que simbolizou uma mais significativa descentralização do poder, ao longo dos 520 anos de nossa história.
Bem observou, a propósito, o Ministro Sepúlveda Pertence, ao proferir voto no julgamento da Reclamação n.º 370-1/MT: “No Brasil, a escalada centralista iniciada com a Constituição de 34, acentua-se nas posteriores, ainda quando se faça completa abstração das fases de paroxismo unitarista dos regimes autoritários de 37 e 67/69, para só levar em conta os textos democratizantes de 46 e 88”.
Houve, de fato, essa escalada centralizadora em nossa história política, mas, em verdade, tudo indica que apenas retomamos uma característica de nosso Estado, o qual, desde seus primórdios, com as Capitanias Hereditárias – em relação às quais uma aparente descentralização administrativa e política ocultava o poder central da Coroa – ostentou relações de poder divididas entre governantes e representantes da elite econômica e política.
A constitucionalização dessa escolha veio com a Carta Política de 1891, cujo art. 1º proclamou, em língua original: “Art. 1º. A Nação Brasileira adopta como fórma de governo, sob o regimen representativo, a Republica Federativa proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitue-se, por união perpetua e indissoluvel das suas antigas provincias, em Estados Unidos do Brasil.” Desde então, até 1930 – quando, por decreto, Getúlio Vargas dissolveu o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas Estaduais e as Câmaras Municipais, além de cassar os mandatos dos Governadores e Prefeitos, substituídos por interventores – vivenciamos um momento distinto na relação entre o poder central e as unidades federadas.
A inspiração desse federalismo veio, como sabido, dos Estados Unidos da América, formados inicialmente pelas 13 colônias que se desprenderam da Coroa britânica. Todavia, enquanto o modelo federativo estadunidense sempre foi do tipo centrífugo, caracterizado por uma maior descentralização do poder, com distribuição ampla de competências com os Estados e Municípios, o brasileiro nunca abriu mão de um maior poder central, ainda que, nesse período da Primeira República, tenha delegado aos estados, no que interessa, a competência para legislar em matéria processual.
Copiamos a forma de governo, copiamos o modelo da Suprema Corte (embora a nossa, inicialmente, contasse com 15 membros, ao invés dos 9 justices da homólogo tribunal norteamericano) e copiamos outros “produtos” dos EUA, como ilustra Aliomar Baleeiro:
Por outro lado, o establishment dos velhos políticos, dos barões, viscondes e marqueses, banqueiros e exportadores, desfalcadas as fileiras pela deserção dos fazendeiros e militares, não conseguira captar a lealdade dos filhos, os jovens, que desde 1870 se deixavam fascinar pela sereia republicana, ou pelo positivismo e pelas instituições norte-americanas, às quais creditavam o formidável desenvolvimento econômico dos Estados Unidos nos dois decênios após o término da Guerra de Secessão. Nas classes médias, muitas crianças nascidas por esse tempo ganhavam como prenome “Washington”, “Hamilton”, “Jefferson”, do mesmo modo que um menino nascido em meio do século XIX, no fastígio da Carta de 1824, fora batizado Benjamin Constant Botelho de Magalhães (CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS Volume II, 1891. Brasília: Senado Federal, 2012).
Foi nessa ambiência que vieram, paulatinamente, os Códigos de Processo Penal dos Estados, a saber:
Amazonas (Lei nº 334, de 14/2/1901), Bahia (Lei nº 1.119, de 21/8/1915), Ceará (Lei nº 1950, de 24/12/1921), Espirito Santo (Decreto nº 1.891, de 26/9/1914), Goiás (Lei nº 659, de 5/6/1920), Maranhão (Lei nº 507, de 22/3/1909), Minas Gerais (Decreto nº 7.259, de 14/6/1926), Paraíba (Lei nº 336, de 21/10/1910), Paraná (Lei nº 1.916, de 23/2/1920), Pernambuco (Lei nº 1.750, de 1925), Piauí (Lei nº 962, de 4/7/1919), Rio Grande do Norte (Lei nº 449, de 30/11/1918), Rio Grande do Sul (Lei nº 24, de 15/8/1898), Rio de Janeiro (Lei nº 1.137, de 20 de dezembro de 1912), Santa Catarina (Lei nº 1.526, de 14/11/1925), Sergipe (Lei nº 753, de 7/9/1918) e Distrito Federal (Decreto nº 16.751, de 31/12/1924.
Algumas peculiaridades dessas leis processuais merecem registro.
A primeira delas é que São Paulo, Alagoas, Mato Grosso e Pará não editaram legislação processual própria, preferindo seguir sob a regência do Código de Processo Criminal da Primeira Instância, de 1832, e das leis posteriores que o modificaram, especialmente a Lei nº 261, de 3/12/1941 (que inaugurou o período conhecido como policialismo judiciário, com sobreposição de funções policiais e judiciais) e seu respectivo Regulamento nº 120, e a Lei nº 2.033, de 20/9/11871, a qual, entre outras alterações, instituiu o inquérito policial.
Em relação ao estado de São Paulo, aliás, José Henrique Pierangelli pontua que, por haver preferido seguir a legislação imperial, “deve ter-se convertido em verdadeiro martírio para os profissionais da época” lidar com um conjunto de leis “complexo, fragmentário, desprovido de unidade e de sistema” (Processo Penal: evolução histórica e fontes legislativas, Bauru: Jalovi, 1983, p. 164).
Situação particular e curiosa se verificou na edição do CPP do estado do Rio Grande do Sul: além de ter sido o primeiro entre os congêneres (enquanto o último foi o da Paraíba, em 1932), bem como de ter sido o único a viger ainda no Século XIX (1898), sua elaboração foi incumbida ao então Desembargador Antonio Augusto Borges de Medeiros, o qual acabou por promulgar o código já como Presidente da unidade federada, sucedendo quem o designara, Júlio de Castilhos.
A propósito, muitos dos códigos foram elaborados por comissões de juristas, mas houve aqueles – como o sul rio grandense – em que se incumbiu tal missão a uma única pessoa. E o destaque vai, nesse particular, ao Código de Processo Penal da Bahia, que, em formato de código unitário, i.e., com disposições de processos civil, comercial e criminal, teve o Livro III, sobre o Processo Criminal, redigido pelo jurista Eduardo Espínola.
Aliás, entre os códigos unitários, mencione-se, por sua abrangência, o de Santa Catarina, composto de nada menos do que 2.606 artigos (quiçá o mais extenso diploma legal já produzido no Brasil), e que reservou os capítulos X a XV para os dispositivos processuais penais.
Por sua vez, o Distrito Federal foi o único dos códigos a vir assinado não por governadores ou presidentes de estados, mas pelo Presidente da República, Artur Bernardes.
Os códigos estaduais, salvo uma ou outra disposição tópica, não inovaram substancialmente em relação à legislação do Império e tampouco se diferenciavam muito entre eles, o que acabou por permitir uma certa uniformidade na aplicação do direito processual nas unidades federadas. Diversa, porém, foi a assertiva de Frederico Marques, para quem “o golpe dado na unidade processual não trouxe vantagem alguma para nossas instituições jurídicas; ao contrário, essa fragmentação contribuiu para que se estabelecesse acentuada diversidade de sistema, o que, sem dúvida alguma, prejudicou a aplicação da lei penal.” (Elementos de Direito Processual Penal, v. 1, Rio-São Paulo: Forense, 1965, p. 102).
Sob outra perspectiva, os códigos estaduais e o direito processual penal pátrio receberam críticas de Vicente Ráo, autor do Projeto de Código de Processo Penal apresentado a Getúlio Vargas em 1935, em cuja Exposição de Motivos assinalou:
Nosso direito processual, no crime, mesmo nos Estados onde se decretaram novos códigos, ressente-se, em suas linhas gerais, do formalismo excessivo e emaranhado, que a tradição nos legou. Faltou-nos, em matéria criminal, o equivalente do regulamento n. 737, de 1850, que, no processo cível, pode ainda hoje ser invocado como modelo de simplicidade, concisão e clareza.
Ainda que se possa dar razão a tais observações, não há como negar o valor histórico e a importância dessa pletora de leis processuais penais da Primeira República, adornadas, nesta magnífica coleção, por substanciosos e fecundos comentários a cada um dos códigos estaduais, na pena de juristas de escol.
É importante sublinhar, sem embargo, que a proclamação da República e a maior autonomia concedida aos estados não foram capazes de engendrar novos rumos ao país, que, até então, vivenciara quase sete décadas de um regime monárquico e mais de três séculos de uma colonização predatória.
Em verdade, como já anotei alhures (Rumo a um processo penal democrático. In Justiça criminal e democracia, Barcelona: Marcial Pons, 2013, p. 23-58) éramos, ainda no Século XIX, um país rudimentar, longe, ao menos culturalmente, dos padrões vigentes em outros povos colonizados precipuamente por ingleses e até mesmo dos povos ocupados por espanhóis. Portugal proibia à Colônia qualquer iniciativa que desse ao Brasil alguma autonomia cultural, econômica ou política.
Não havia liberdade de empreender; era vedado estabelecer tipografias e importar livros e não havia ensino superior. Em um tal ambiente cultural hostil à assimilação dos novos ares respirados no Hemisfério Norte, a formação de letrados em Direito se restringia a uma pequena minoria de jovens integrantes da elite econômica e política brasileira, os quais, antes que se instalassem as Faculdades de Direito de São Paulo e de Olinda, em 1827, quase invariavelmente se graduavam na Universidade de Coimbra. Dali retornavam com o título de bacharéis, para ocupar cargos públicos ou simplesmente o espaço social destinado aos que exibiam tão rara qualificação profissional. Eram doutores em um país de ignorantes, em meio a uma “sociedade liberal de fachada” (...) e “antidemocrática em seu âmago” (FREITAS, RICARDO DE BRITO A. P. As raízes do Positivismo Penal no Brasil, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 237).
Tínhamos, assim, uma cultura jurídica vinculada a tradições coloniais e imperiais, cultivada pelo bacharelismo que produziu uma elite intelectual distante da realidade brasileira e das exigências de um mundo industrializado que começava a despontar, com a migração de grandes segmentos da população rural para os centros urbanos e os naturais problemas que isso representava em uma sociedade recém-saída de uma economia que, durante séculos, dependeu de (e explorou a) mão de obra escrava.
Isso tudo confirmava a opinião de que vivíamos, na República Velha, por um momento de adaptação, imersos ainda em “estruturas de dominação tradicional, como o mandonismo, o coronelismo e outros” (BOTELHO, André & SCHWARCZ, Lilia Moritz. Cidadania, um projeto em construção. Minorias, justiça e direitos. São Paulo: Claro Enigma, 2012, p. 20).
Essa herança cultural de nosso povo ainda se manifesta, explícita ou implicitamente, em nosso cotidiano, mas, por certo, muito avançamos, inclusive no âmbito do Direito positivado, embora, no tocante ao Código de Processo Penal, estejamos carentes de um novo diploma que se harmonize, em sua estrutura e em sua dinâmica, à Constituição da República.
A presente obra representa, assim, um marco na história do mercado editorial brasileiro e, mais ainda, consubstancia a vitória de um pensamento dedicado às ciências processuais, funcionalmente vinculadas aos valores, princípios, regras e diretrizes que orientam a convivência dos povos, sob o governo das leis.
E, a esse propósito, a coleção ora ofertada ao público brasileiro – pela iniciativa do Prof. Mauro Fonseca Andrade – colmata uma ignominiosa lacuna em nossa tradição acadêmica. Que saibamos reconhecer o quanto já percorremos e os passos que ainda precisamos trilhar, rumo a um processo penal cada vez mais moderno, democrático, efetivo e, acima de tudo, servo dos valores que compõem a ideia de uma Justiça Criminal iluminada pela razão humana!
ISBN | |
Dimensões | 23 x 15.5 x 4 |
Tipo do Livro | Impresso |
Páginas | |
Edição | 1 |
Idioma | Português |
Editora | Editora Thoth |
Publicação | Novembro/2021 |
-
Pós-Doutor em Direito Processual Constitucional pela Universitá degli Studi di Firenze. Doutor em Direito pela Universitat de Barcelona. Especialista e Mestre pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS). Professor Titular de Direito Processual Civil da UNISINOS e PUC/RS. Professor Adjunto da UFN. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS (Mestrado, Doutorado e Pós-Doutorado) e da UFN. Membro da International Association of Procedural Law. Membro do Instituto Ibero-americano de Derecho Procesal. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual Civil. Membro da Academia Brasileira de Direito Processual. Membro da Asociación Argentina de Derecho Procesal. Huésped de Honor de la Casa de Altos Estudios de la Universidad Nacional de Córdoba, Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Advogado.Pós-Doutor em Direito Processual pela UNISINOS. Doutor em Direito pela Universitat de Barcelona. Professor Associado de Direito Processual Penal da UFRGS. Promotor de Justiça/RS.Doutor em Direito de Estado pela Universidade Federal do Paraná. Professor Titular de Direito Processual Penal da Escola de Direito e do Programa de Mestrado Profissional em Direito da Universidade Positivo. Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná.
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