1 JEREMY BENTHAM – PENSAMENTOS, MANUSCRITOS E UMA OBRA AINDA SENDO CONHECIDA
Jeremy Bentham nasceu em Londres em 15 de fevereiro de 1748, onde também faleceu aos 84 anos, idade bastante avançada para sua época, em 06 de junho de 18321. Era o filho mais velho de Alicia Whitehorn Grove e Jeremiih Bentham, advogado que enriqueceu com transações imobiliárias. Teve uma educação rigorosa, aprendendo latim, grego, música, desenho e dança. Estudou no Queen’s College, em Oxford, de 1760 a 1763, graduando-se com 15 anos, sendo que em 1763 também obteve o diploma de bacharel em Artes, mesmo ano que ingressou como estudante na Court of King’s Bench. Atuando como advogado, teve aversão pela profissão, não prosseguindo, quando então preencheu alguns anos de sua vida com pesquisas e estudos.
Jeremy Bentham foi filósofo e jurista. Clóvis Bevilhaqua3, no seu Juristas Philosophos, destaca que a jurisprudência inglesa teve em William Blackstone (1723-1780) seu mais nobre representante, que realizou o árduo trabalho de organização metódica da produção da common law (Comentários sobre as Leis de Inglaterra – Commenteries on the Laws of England – em 4 volumes – 1765-1769), considerada a primeira grande obra da jurisprudência inglesa desde Institutes (1628-1644) de Edward Coke, porém não lhe restou energia e tempo para o exame das fontes históricas e de uma crítica aprofundada das doutrinas filosóficas, o que coube a Jeremy Bentham, que por meio de estudo genuinamente científico “deu ao direito por fundamento o interesse geral”, sendo, nas palavras de Bevilaqua, “um acto de coragem moral e um grande serviço prestado á marcha evolucional da philosophia jurídica”.
O primeiro livro de Bentham foi A fragment on Government (1776) em que criticava o “antirreformismo” da obra de Blackstone, pela utilização eclética de ideias sobre direito natural e sua aceitação, acrítica e conservadora, dos princípios e práticas da lei inglesa, o que revelava Bentham com um fervoroso questionador.
Seu trabalho atraiu a atenção de muitos, inclusive no governo. Nigel Warburton4 comenta que Bentham, imerso em sua própria época, tinha uma grande ansiedade: propor soluções para os problemas sociais que o cercavam.
“Deontologia” foi termo criado por Bentham para designar uma “ciência do conveniente”, “uma moral fundada na tendência a perseguir o prazer e fugir da dor e que, portanto, não lance mão de apelos à consciência, ao dever etc.”.5
Integrante do utilitarismo, que tem sua origem em Epicuro na identificação do “bom como útil”, expressão empregada pela primeira vez por Bentham em 1781, sendo considerado criador da “filosofia política”, expressando que utilitarismo representa a substituição pelo fim em relação aos móveis que levam um homem a agir6, em que ações são boas ou más levando em conta as suas consequências,7 sendo considerada uma teoria radical para o final do século XVIII, já que nas palavras de Bentham “todos valem como um, e ninguém vale mais que um”, dando ênfase à igualdade, aliás, tinha apreço por soluções que apresentassem um justificativa matemática.8
Entre os anos de 1785 e 1787 fez um tour pela França, Mediterrâneo e Turquia até Grichoff, na Russia, onde estava seu irmão Samuel Bentham, um reconhecido inventor mecânico, responsável pela supervisão das organizações do Príncipe Potemkin, nesta época tendo escrito Defense of Usury e, com a ajuda de seu irmão, escreveu a conhecida obra The Panopticon, em que, com investigações filosóficas relacionadas aos princípios da punição, elaborou um plano de disciplina na prisão, inclusive com propostas arquitetônicas para melhor controle dos prisioneiros, tendo gasto grande parte de sua fortuna, durante 30 anos buscando viabilizar seu projeto, que acabou abandonado politicamente em 1811, sendo que em 1813 recebeu uma compensação pelos danos que teve.9
Seu nome espraiou-se por toda Europa e América com a publicação em 1789 do An Introduction to the Principles of Morals and Legislation, tendo em 1792 recebido o título de cidadão francês, tendo se dedicado a analisar e criticar a Declaração de Direitos Francesa, mesmo ano em que seu pai faleceu, deixando-o financeiramente independente.
Em 1823 houve a primeira publicação do Tratado de Las Pruebas Judiciales, resultado da dedicação de organização dos manuscritos de Bentham por E. Doumont.10
Em 1824 fundou, com outros intelectuais, a Westminster Review que foi um importante veículo de propagação das suas ideias e sua obra póstuma foi Teoria dos deveres ou A ciência da moral (1834).11
Muitos descrevem Jeremy Bentham como um homem muito além do seu tempo, em que um de seus objetivos era não se contentar em compilar o direito, mas sim permanentemente refletir e questionar, apresentando soluções, sempre tratava dos mais diversos assuntos, sendo um pensador, defendia o sufrágio universal e a descriminalização da homossexualidade.12
Bentham produzia entre dez e vinte folhas de manuscrito por dia, mesmo quando tinha 80 anos, sendo que milhares de manuscritos existem até hoje reunidos, em sua maioria, em duas coleções na Biblioteca da University College London (UCL), aonde é desenvolvido, desde 1960, The Bentham Project13, um centro mundial de Estudos de Bentham, que pretende reunir seus manuscritos em cerca de oitenta volumes e debater seus trabalhos, com auxílio do mundo todo e que conta com o apoio relevante da Britsh Academy.
Os manuscritos, desde 1960, são transcritos, sendo que atualmente conta com apoio colaborativo mundial pela internet, organizados em “caixas digitais” e divididos em manuscritos escaneados, permitindo o trabalho colaborativo, como pode ser verificado em: http://transcribe-bentham.ucl.ac.uk/td/JB/100/001/001.
2 O “TRATADO DE LAS PRUEBAS JUDICIALES”
O trabalho de Bentham se dava por manuscritos, mas a organização, edição e publicação, na grande maioria, somente ocorria pelo esforço e dedicação de amigos e discípulos,14 disto é possível entender o porquê o original do “Tratado de las Pruebas Judiciales” ser compilado dos “manuscritos” do autor por Etienne Dumont em 1823.
Jeremy Bentham foi homem muito além do seu tempo, suas reflexões não são apenas uma ponte entre o passado e o presente ou um trabalho restrito à common law, mas uma abordagem que mantém grande atualidade, seja porque os problemas se repetem, seja porque mesmo tratando de problemas de sua época, apresenta reflexões que abstraídos elementos históricos, a ratio extraída de seus textos estimula reflexões sobre problemas atuais.
Ao ler integralmente a obra, perceber-se-á que há uma força gravitacional em relação à prova testemunhal, isto seguramente não somente deriva da valorização da oralidade na common law, mas também pelo momento histórico em que as provas documentais não tinham o papel que possuem hoje, seja pelo conhecimento da escrita não alcançar toda a população, com também pelo fato da documentação ser muito rudimentar. Mas isto não prejudica a riqueza das reflexões, pois suas críticas e preocupações são cambiáveis a “novos temas”. O trabalho apresenta um manual estimulador de reflexões, não somente de respostas rígidas e impositivas, o que assegura a sua característica atemporal.
Define-se, assim, um “clássico”. Seus pensamentos não têm prazo de validade.
Um exemplo é como Bentham trata da taquigrafia como uma evolução fundamental na transcrição de depoimentos e na importância de funcionários preparados que muito contribuiria para documentação, celeridade, exatidão e melhores julgamentos de questões fáticas.
A tecnologia modificou, mas cabe nos perguntar se não devemos nas provas orais, além da possibilidade de gravações de áudio e vídeo para consultas se necessárias, se não é conveniente adotar tecnologias de transcrição automática permitindo não somente a reprodução escrita (em uma retomada dos resultados da taquigrafia...) mas, especialmente o emprego de inteligência artificial (IA), como técnica não para já apresentar um resultado de julgamento, mas, por exemplo, indexações informativas e sua correlação entre diversos meios de prova, permitindo “sinapses” entre provas distintas sobre os mesmos fatos e a partir destas uma análise crítica em raciocínios probatórios humanos, o que significa uma vivificação contemporânea do princípio da unidade probatória, em que todo o conjunto probatório deve ser analisado para identificação do que colabora para solução das questões fáticas.
Para elaborar esta apresentação, ao reler a obra revivi meus estudos preliminares. Sempre tive uma mania de cuidadosamente grifar e comentar com lapiseira muito sutilmente os livros que leio, revendo o Tratado deparei-me com uma “seleção natural” que praticamente 20 anos depois muito diz em relação aos meus questionamentos. Bentham é parte integrante das minhas inquietudes...
O pensador questionando o exagero na adoção da forma no direito em prejuízo do conteúdo, adverte que a forma de atuar pode ser restringida, mas a maneira de pensar não! (Livro Primeiro, Cap. II), quanto podemos tratar aqui.
Por exemplo, como manter um juiz que tomou contato com prova de impacto, mas que foi obtida por meio ilícito? É possível lhe suprimir o impacto na memória dos elementos informativos que já estão assimilados? E não se pense que isto pode ser apenas no sentido de o juiz arrumar argumentos nos autos já “higienizados”, mas que na realidade não haveria elementos suficientes se não tivesse a “maneira de pensar” já definida; e o contrário pode também ocorrer, pois para “justificar” o desligamento da chave da memória (que não ocorrerá!) o juiz pode artificialmente questionar o conjunto probatório julgando-o empobrecido e desta maneira apresentar um rigor que empregará a “prova obtida por meio ilícito” às avessas... ou seja, para negar o conjunto probatório como esclarecedor, que se não houvesse a dita prova até seria um conjunto aceito pelo usual raciocínio probatório crítico do juiz. A retirada do juiz natural é um prejuízo maior do que as consequências aqui pontualmente enumeradas?
Vem a calhar mais uma das reflexões profundas e diretas de Bentham... Há que se ter enorme zelo com regras de exclusão de prova, pois a aplicação de cada uma delas deixará o resultado do processo cada vez mais distante da verdade... (Livro Sétimo – Da exclusão das provas), mas não impõe uma posição exclusiva, ao contrário, reconhece que há situações em que imperativa a exclusão, e para tal trabalho apresenta um guia para a prática da verificação do cabimento da exclusão:
1º Não produzir um dano maior que o que se quer evitar (modernamente damos o nome de teoria do mal menor! – estava em Bentham!);
2º Não excluir um benefício maior por um benefício menor;
3º Não produzir um dano preponderante querendo conseguir um benefício qualquer;
4º Não excluir um benefício preponderante tratando de excluir um dano.
E conclui, “precisamos, portanto, considerar as vantagens e os inconvenientes” (a que atribuímos hoje o nome de “proporcionalidade”... sim, Bentham!!).
Em relação à simplicidade do procedimento primitivo, observa que a busca de ofender a lei, produz as sutilezas da chicana e na busca incessante de preventivamente buscar impedir a fraude, recorriam-se às regras para combater o inimigo e a cada nova tentativa os construtores idealizavam novas regras, com isto procedimentos que precisavam de poucas regras acabaram com um emaranhado de complicações desnecessárias, defende Bentham que o modelo antigo se perdeu e com ele a simplicidade que era bela, sendo necessário um retorno, porém é fundamental conhecer as razões que a justificam, para não a abandonar novamente... (Livro I - Cap. III – O Modelo Natural do Procedimento Legal)....
No tocante ao interrogatório de testemunha e o risco de mentir, observa que “a forma do interrogatório”, que podemos compreender com o emprego de técnicas de interrogatório é uma garantia muito mais segura para obter a verdade do que as ameaças mais severas da lei... (Livro I - Cap. XIII – Da sanção legal).
Sobre publicidade... Quanto mais secretos foram os julgamentos, mais odiosos foram os resultados. (Livro II - Cap. X - Publicidade) e Bentham não se limita a uma frase conclusiva de efeito, traz exemplos e casos concretos para justificar suas afirmações.
Reflexões sobre a importância do advogado e porque não se pode esperar o mesmo grau de informação sobre o caso individual do juiz, nem mesmo interesse em favor de cada litigante, demonstrando que não há como se falar em igualdade entre as partes litigantes sem advogados (Livro Segundo – Cap. IV).
A explicação de provas circunstanciais e a diferença entre fato e circunstância, apontando que “todo fato, com respeito a outro, pode ser denominado de uma circunstância”, porque “a prova circunstancial é a que se deduz da existência de um fato ou de um grupo de fatos que, aplicado imediatamente ao fato principal, levam à conclusão de que um fato ocorreu”, “são fatos que estão ao derredor de algum outro fato” (Livro Quinto – Provas circunstanciais).
E uma posição que Jeremy Bentham dá um destaque especial porque, segundo ele, reaparece constantemente:
“Não há que se excluir nenhuma prova, nenhum testemunho por somente temor de ser enganado” (Livro Sétimo Regras de exclusão – Cap. XV).
E outra advertência é seminal quanto a prova: “Crer que tudo está descoberto é um erro profundo: É confundir o horizonte com os limites do mundo” (Livro Oitavo – Do improvável e do impossível).
Bentham defendia que o ônus da prova precisava ser imposto em cada caso concreto, porque deve caber à parte que possa aportar, com menos inconvenientes, o que significa dizer, em menor tempo e com menos gastos (Livro Sexto – Cap. XVI – Ônus da prova. Sobre quem deve recair?). A reflexão põe em xeque a aplicação geral e imutável de que a demonstração do fato caberia sempre a quem o mesmo aproveita, pois este pode não ter condições de produzir a prova, além de poder importar em esforços e despesas muito maiores do que se atribuído à parte em melhores condições. Atualmente esta posição é muito difundida no Brasil não citando Bentham, a origem, mas o atual §1º do art. 373 do Código de Processo Civil, que teria se inspirado nas “cargas dinamicas de la prueba” de Jorge Peyrano, processualista argentino, sem dúvida grande crítico contemporâneo da distribuição estática, porém a estrutura primária, seminal é a reflexão de Bentham.
Pois bem. As passagens são apenas pequenas dosagens estimuladoras de um encontro com Jeremy Bentham e seu espírito inquieto, questionador e de sempre propor atitudes.
Estará sempre certo?
Antes de responder, cabe a seguinte pergunta: o que é certo? O que é oportuno?
Os textos de Bentham, além de riqueza informativa geral, tem nos momentos em que se posiciona, e faz isto a todo momento, incansavelmente, parecem apresentar reticências imaginárias (...) como deixando para o leitor a execução em determinando momento histórico... as respostas não estão prontas para os problemas do nosso tempo, mas sem dúvida há enorme carga estimuladora de pautas para reflexão e posicionamentos contemporâneos.
Excelente diálogo com Jeremy Bentham.
William Santos Ferreira
1 JEREMY BENTHAM – PENSAMENTOS, MANUSCRITOS E UMA OBRA AINDA SENDO CONHECIDA
Jeremy Bentham nasceu em Londres em 15 de fevereiro de 1748, onde também faleceu aos 84 anos, idade bastante avançada para sua época, em 06 de junho de 18321. Era o filho mais velho de Alicia Whitehorn Grove e Jeremiih Bentham, advogado que enriqueceu com transações imobiliárias. Teve uma educação rigorosa, aprendendo latim, grego, música, desenho e dança. Estudou no Queen’s College, em Oxford, de 1760 a 1763, graduando-se com 15 anos, sendo que em 1763 também obteve o diploma de bacharel em Artes, mesmo ano que ingressou como estudante na Court of King’s Bench. Atuando como advogado, teve aversão pela profissão, não prosseguindo, quando então preencheu alguns anos de sua vida com pesquisas e estudos.
Jeremy Bentham foi filósofo e jurista. Clóvis Bevilhaqua3, no seu Juristas Philosophos, destaca que a jurisprudência inglesa teve em William Blackstone (1723-1780) seu mais nobre representante, que realizou o árduo trabalho de organização metódica da produção da common law (Comentários sobre as Leis de Inglaterra – Commenteries on the Laws of England – em 4 volumes – 1765-1769), considerada a primeira grande obra da jurisprudência inglesa desde Institutes (1628-1644) de Edward Coke, porém não lhe restou energia e tempo para o exame das fontes históricas e de uma crítica aprofundada das doutrinas filosóficas, o que coube a Jeremy Bentham, que por meio de estudo genuinamente científico “deu ao direito por fundamento o interesse geral”, sendo, nas palavras de Bevilaqua, “um acto de coragem moral e um grande serviço prestado á marcha evolucional da philosophia jurídica”.
O primeiro livro de Bentham foi A fragment on Government (1776) em que criticava o “antirreformismo” da obra de Blackstone, pela utilização eclética de ideias sobre direito natural e sua aceitação, acrítica e conservadora, dos princípios e práticas da lei inglesa, o que revelava Bentham com um fervoroso questionador.
Seu trabalho atraiu a atenção de muitos, inclusive no governo. Nigel Warburton4 comenta que Bentham, imerso em sua própria época, tinha uma grande ansiedade: propor soluções para os problemas sociais que o cercavam.
“Deontologia” foi termo criado por Bentham para designar uma “ciência do conveniente”, “uma moral fundada na tendência a perseguir o prazer e fugir da dor e que, portanto, não lance mão de apelos à consciência, ao dever etc.”.5
Integrante do utilitarismo, que tem sua origem em Epicuro na identificação do “bom como útil”, expressão empregada pela primeira vez por Bentham em 1781, sendo considerado criador da “filosofia política”, expressando que utilitarismo representa a substituição pelo fim em relação aos móveis que levam um homem a agir6, em que ações são boas ou más levando em conta as suas consequências,7 sendo considerada uma teoria radical para o final do século XVIII, já que nas palavras de Bentham “todos valem como um, e ninguém vale mais que um”, dando ênfase à igualdade, aliás, tinha apreço por soluções que apresentassem um justificativa matemática.8
Entre os anos de 1785 e 1787 fez um tour pela França, Mediterrâneo e Turquia até Grichoff, na Russia, onde estava seu irmão Samuel Bentham, um reconhecido inventor mecânico, responsável pela supervisão das organizações do Príncipe Potemkin, nesta época tendo escrito Defense of Usury e, com a ajuda de seu irmão, escreveu a conhecida obra The Panopticon, em que, com investigações filosóficas relacionadas aos princípios da punição, elaborou um plano de disciplina na prisão, inclusive com propostas arquitetônicas para melhor controle dos prisioneiros, tendo gasto grande parte de sua fortuna, durante 30 anos buscando viabilizar seu projeto, que acabou abandonado politicamente em 1811, sendo que em 1813 recebeu uma compensação pelos danos que teve.9
Seu nome espraiou-se por toda Europa e América com a publicação em 1789 do An Introduction to the Principles of Morals and Legislation, tendo em 1792 recebido o título de cidadão francês, tendo se dedicado a analisar e criticar a Declaração de Direitos Francesa, mesmo ano em que seu pai faleceu, deixando-o financeiramente independente.
Em 1823 houve a primeira publicação do Tratado de Las Pruebas Judiciales, resultado da dedicação de organização dos manuscritos de Bentham por E. Doumont.10
Em 1824 fundou, com outros intelectuais, a Westminster Review que foi um importante veículo de propagação das suas ideias e sua obra póstuma foi Teoria dos deveres ou A ciência da moral (1834).11
Muitos descrevem Jeremy Bentham como um homem muito além do seu tempo, em que um de seus objetivos era não se contentar em compilar o direito, mas sim permanentemente refletir e questionar, apresentando soluções, sempre tratava dos mais diversos assuntos, sendo um pensador, defendia o sufrágio universal e a descriminalização da homossexualidade.12
Bentham produzia entre dez e vinte folhas de manuscrito por dia, mesmo quando tinha 80 anos, sendo que milhares de manuscritos existem até hoje reunidos, em sua maioria, em duas coleções na Biblioteca da University College London (UCL), aonde é desenvolvido, desde 1960, The Bentham Project13, um centro mundial de Estudos de Bentham, que pretende reunir seus manuscritos em cerca de oitenta volumes e debater seus trabalhos, com auxílio do mundo todo e que conta com o apoio relevante da Britsh Academy.
Os manuscritos, desde 1960, são transcritos, sendo que atualmente conta com apoio colaborativo mundial pela internet, organizados em “caixas digitais” e divididos em manuscritos escaneados, permitindo o trabalho colaborativo, como pode ser verificado em: http://transcribe-bentham.ucl.ac.uk/td/JB/100/001/001.
2 O “TRATADO DE LAS PRUEBAS JUDICIALES”
O trabalho de Bentham se dava por manuscritos, mas a organização, edição e publicação, na grande maioria, somente ocorria pelo esforço e dedicação de amigos e discípulos,14 disto é possível entender o porquê o original do “Tratado de las Pruebas Judiciales” ser compilado dos “manuscritos” do autor por Etienne Dumont em 1823.
Jeremy Bentham foi homem muito além do seu tempo, suas reflexões não são apenas uma ponte entre o passado e o presente ou um trabalho restrito à common law, mas uma abordagem que mantém grande atualidade, seja porque os problemas se repetem, seja porque mesmo tratando de problemas de sua época, apresenta reflexões que abstraídos elementos históricos, a ratio extraída de seus textos estimula reflexões sobre problemas atuais.
Ao ler integralmente a obra, perceber-se-á que há uma força gravitacional em relação à prova testemunhal, isto seguramente não somente deriva da valorização da oralidade na common law, mas também pelo momento histórico em que as provas documentais não tinham o papel que possuem hoje, seja pelo conhecimento da escrita não alcançar toda a população, com também pelo fato da documentação ser muito rudimentar. Mas isto não prejudica a riqueza das reflexões, pois suas críticas e preocupações são cambiáveis a “novos temas”. O trabalho apresenta um manual estimulador de reflexões, não somente de respostas rígidas e impositivas, o que assegura a sua característica atemporal.
Define-se, assim, um “clássico”. Seus pensamentos não têm prazo de validade.
Um exemplo é como Bentham trata da taquigrafia como uma evolução fundamental na transcrição de depoimentos e na importância de funcionários preparados que muito contribuiria para documentação, celeridade, exatidão e melhores julgamentos de questões fáticas.
A tecnologia modificou, mas cabe nos perguntar se não devemos nas provas orais, além da possibilidade de gravações de áudio e vídeo para consultas se necessárias, se não é conveniente adotar tecnologias de transcrição automática permitindo não somente a reprodução escrita (em uma retomada dos resultados da taquigrafia...) mas, especialmente o emprego de inteligência artificial (IA), como técnica não para já apresentar um resultado de julgamento, mas, por exemplo, indexações informativas e sua correlação entre diversos meios de prova, permitindo “sinapses” entre provas distintas sobre os mesmos fatos e a partir destas uma análise crítica em raciocínios probatórios humanos, o que significa uma vivificação contemporânea do princípio da unidade probatória, em que todo o conjunto probatório deve ser analisado para identificação do que colabora para solução das questões fáticas.
Para elaborar esta apresentação, ao reler a obra revivi meus estudos preliminares. Sempre tive uma mania de cuidadosamente grifar e comentar com lapiseira muito sutilmente os livros que leio, revendo o Tratado deparei-me com uma “seleção natural” que praticamente 20 anos depois muito diz em relação aos meus questionamentos. Bentham é parte integrante das minhas inquietudes...
O pensador questionando o exagero na adoção da forma no direito em prejuízo do conteúdo, adverte que a forma de atuar pode ser restringida, mas a maneira de pensar não! (Livro Primeiro, Cap. II), quanto podemos tratar aqui.
Por exemplo, como manter um juiz que tomou contato com prova de impacto, mas que foi obtida por meio ilícito? É possível lhe suprimir o impacto na memória dos elementos informativos que já estão assimilados? E não se pense que isto pode ser apenas no sentido de o juiz arrumar argumentos nos autos já “higienizados”, mas que na realidade não haveria elementos suficientes se não tivesse a “maneira de pensar” já definida; e o contrário pode também ocorrer, pois para “justificar” o desligamento da chave da memória (que não ocorrerá!) o juiz pode artificialmente questionar o conjunto probatório julgando-o empobrecido e desta maneira apresentar um rigor que empregará a “prova obtida por meio ilícito” às avessas... ou seja, para negar o conjunto probatório como esclarecedor, que se não houvesse a dita prova até seria um conjunto aceito pelo usual raciocínio probatório crítico do juiz. A retirada do juiz natural é um prejuízo maior do que as consequências aqui pontualmente enumeradas?
Vem a calhar mais uma das reflexões profundas e diretas de Bentham... Há que se ter enorme zelo com regras de exclusão de prova, pois a aplicação de cada uma delas deixará o resultado do processo cada vez mais distante da verdade... (Livro Sétimo – Da exclusão das provas), mas não impõe uma posição exclusiva, ao contrário, reconhece que há situações em que imperativa a exclusão, e para tal trabalho apresenta um guia para a prática da verificação do cabimento da exclusão:
1º Não produzir um dano maior que o que se quer evitar (modernamente damos o nome de teoria do mal menor! – estava em Bentham!);
2º Não excluir um benefício maior por um benefício menor;
3º Não produzir um dano preponderante querendo conseguir um benefício qualquer;
4º Não excluir um benefício preponderante tratando de excluir um dano.
E conclui, “precisamos, portanto, considerar as vantagens e os inconvenientes” (a que atribuímos hoje o nome de “proporcionalidade”... sim, Bentham!!).
Em relação à simplicidade do procedimento primitivo, observa que a busca de ofender a lei, produz as sutilezas da chicana e na busca incessante de preventivamente buscar impedir a fraude, recorriam-se às regras para combater o inimigo e a cada nova tentativa os construtores idealizavam novas regras, com isto procedimentos que precisavam de poucas regras acabaram com um emaranhado de complicações desnecessárias, defende Bentham que o modelo antigo se perdeu e com ele a simplicidade que era bela, sendo necessário um retorno, porém é fundamental conhecer as razões que a justificam, para não a abandonar novamente... (Livro I - Cap. III – O Modelo Natural do Procedimento Legal)....
No tocante ao interrogatório de testemunha e o risco de mentir, observa que “a forma do interrogatório”, que podemos compreender com o emprego de técnicas de interrogatório é uma garantia muito mais segura para obter a verdade do que as ameaças mais severas da lei... (Livro I - Cap. XIII – Da sanção legal).
Sobre publicidade... Quanto mais secretos foram os julgamentos, mais odiosos foram os resultados. (Livro II - Cap. X - Publicidade) e Bentham não se limita a uma frase conclusiva de efeito, traz exemplos e casos concretos para justificar suas afirmações.
Reflexões sobre a importância do advogado e porque não se pode esperar o mesmo grau de informação sobre o caso individual do juiz, nem mesmo interesse em favor de cada litigante, demonstrando que não há como se falar em igualdade entre as partes litigantes sem advogados (Livro Segundo – Cap. IV).
A explicação de provas circunstanciais e a diferença entre fato e circunstância, apontando que “todo fato, com respeito a outro, pode ser denominado de uma circunstância”, porque “a prova circunstancial é a que se deduz da existência de um fato ou de um grupo de fatos que, aplicado imediatamente ao fato principal, levam à conclusão de que um fato ocorreu”, “são fatos que estão ao derredor de algum outro fato” (Livro Quinto – Provas circunstanciais).
E uma posição que Jeremy Bentham dá um destaque especial porque, segundo ele, reaparece constantemente:
“Não há que se excluir nenhuma prova, nenhum testemunho por somente temor de ser enganado” (Livro Sétimo Regras de exclusão – Cap. XV).
E outra advertência é seminal quanto a prova: “Crer que tudo está descoberto é um erro profundo: É confundir o horizonte com os limites do mundo” (Livro Oitavo – Do improvável e do impossível).
Bentham defendia que o ônus da prova precisava ser imposto em cada caso concreto, porque deve caber à parte que possa aportar, com menos inconvenientes, o que significa dizer, em menor tempo e com menos gastos (Livro Sexto – Cap. XVI – Ônus da prova. Sobre quem deve recair?). A reflexão põe em xeque a aplicação geral e imutável de que a demonstração do fato caberia sempre a quem o mesmo aproveita, pois este pode não ter condições de produzir a prova, além de poder importar em esforços e despesas muito maiores do que se atribuído à parte em melhores condições. Atualmente esta posição é muito difundida no Brasil não citando Bentham, a origem, mas o atual §1º do art. 373 do Código de Processo Civil, que teria se inspirado nas “cargas dinamicas de la prueba” de Jorge Peyrano, processualista argentino, sem dúvida grande crítico contemporâneo da distribuição estática, porém a estrutura primária, seminal é a reflexão de Bentham.
Pois bem. As passagens são apenas pequenas dosagens estimuladoras de um encontro com Jeremy Bentham e seu espírito inquieto, questionador e de sempre propor atitudes.
Estará sempre certo?
Antes de responder, cabe a seguinte pergunta: o que é certo? O que é oportuno?
Os textos de Bentham, além de riqueza informativa geral, tem nos momentos em que se posiciona, e faz isto a todo momento, incansavelmente, parecem apresentar reticências imaginárias (...) como deixando para o leitor a execução em determinando momento histórico... as respostas não estão prontas para os problemas do nosso tempo, mas sem dúvida há enorme carga estimuladora de pautas para reflexão e posicionamentos contemporâneos.
Excelente diálogo com Jeremy Bentham.
William Santos Ferreira
ISBN | 978-65-5959-001-8 |
Dimensões | 23 x 15.5 x 1 |
Tipo do Livro | Impresso |
Páginas | 156 |
Edição | 1 |
Idioma | Português |
Editora | Editora Thoth |
Publicação | Janeiro/2021 |
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Pós-Doutor em Direito (Universidade de Coimbra/POR). Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos (Ius Gentium Conimbrigae/ Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra-POR). Doutor em Direito (UGF). Mestre em Direito (UGF). Pós-Graduado em Direito Processual (UGF). Visiting Professor no Ius Gentium Conimbrigae – Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/POR). Professor Associado de Processo Civil e Teoria Geral do Processo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ. Coordenador da Pós-Graduação em Direito Processual Contemporâneo (UFRRJ). Membro da International Association of Procedural Law-IAPL. Membro do Instituto Iberoamericano de Direito Processual - IIDP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Membro da International Bar Association – IBA. Membro da Associação de Direito e Economia Europeia – ADEE. Membro Efetivo da Comissão Permanente de Direito Processual Civil do IAB-Nacional. Líder do Grupo de Pesquisa “Processo Civil e Desenvolvimento” (UFRRJ/CNPq). Advogado. www.gaiojr.comAdvogado e Professor. Doutor em Direito Processual Civil pela PUC/SP (2020). Pós-doutor pela USP. Mestre em Direito pela UEL (linha de Processo Civil). Pós-graduado em Processo Civil (2009). Pós-graduado em Filosofia Jurídica e Política pela UEL (2011). Membro titular efetivo da Academia de Letras de Londrina. Foi coordenador e fundador da Comissão de Processo Civil da OAB/Londrina. É Coordenador da Comissão de Processo Constitucional da OAB/Londrina. Foi coordenador da pós-graduação em Processo Civil do IDCC Londrina (2018/2022). É professor de pós-graduação na PUC/PR, Escolha da Magistratura do Espírito Santo, Toledo, UNINTER, ABDConst, Escola Superior da Magistratura Catarinense (ESMESC) e Damásio. É membro do IBPD, IAP e IPDP. Conselheiro da OAB Londrina/PR. Editor chefe da Editora Thoth. E-mail brunofuga@brunofuga.adv.brAdvogado e Professor. Mestre e Doutor em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro Efetivo do Instituto Iberoamericano de Derecho Procesal (IIDP), Vice-Diretor de Publicações do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), Membro do Conselho do Centro de Estudos Avançados de Processo (CEAPRO), Sócio Benemérito da Academia Brasileira de Direito Processual Civil (ABDPC). Coordenador da área de contencioso judicial e arbitral da Pós-graduação em Direito Imobiliário da PUC/SP. Professor concursado de Direito Processual Civil na Graduação, Especialização, Mestrado e Doutorado da PUC/SP. E-mail; wsf@wfjf.com.br, Lattes: http://lattes.cnpq.br/5513373440133954
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